HE: Relato de um amor distraído.

Camilla Sales

Era uma pré-seleção de estágio, coisa sem muita importância. Mas naquela foto do aplicativo era alguém diferente. Chamou a atenção. Timidez e vontade misturados com a possibilidade de estar sendo invasivo. E lá se vai uma investida evasiva. Ela nem dava bola. Até que a insegurança de entrar no carro de um desconhecido passou. Era um 13 de março qualquer. Para uns, para eles não. Ela recém entrada na maioridade. Ele cheio de contas a pagar, constituindo empresa, já tinha CNPJ e tudo. Naquele dia um cinema novo, não no sentido glauberiano de uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, mas de um novo lugar. Ele pensava: droga poderíamos ter economizado essa grana. Ainda mais quando ela escolheu aquele filme péssimo. Tudo bem, depois do filme eles nunca mais se veriam mesmo. Tinha sido assim nos últimos meses, desde que ele decidiu desconfiar de tudo e de todos.

Ledo engano. Mal sabia que aquela recém-adulta era cheia de argumentos. Ele gostava daquilo, mas ficava pensativo toda vez que ela era impossibilitada de fazer algo normal. Os pais não deixavam. Era confuso demais. Ainda é. Mas o tempo é Rei, como diria o mestre Gil ao lado de Caetano, no Farol da Barra. Eram diferentes, feito “Eduardo e Monica”, só que ele era Monica e ela Eduardo. Talvez fosse confuso até pra Renato Russo. Mas eles eram assim mesmo. Feitos pra confundir. Essa confusão e diferença foram se misturando. O contraste de peles nem existia mais. Eram cor de meia luz. Iluminados por um smartphone desses modernosos, enquanto se lambiam e se esforçavam numa maratona antropofágica de desejo e vontade. Eram assim. Romance moderno e amor antigo. Amor? Talvez ainda nem tivessem percebido o espaço que estavam ocupando na mente e no coração um do outro. Eram desatentos demais. Até que um dia uma confissão pulou da boca. Pronto, não tinham como fugir. Já era amor.

Ela toda dona de si. Começava a se afastar das coisas de criança pra administrar gente. Enquanto passava por outras seleções de estágio diferentes daquela primeira. Começava a viver como ele vivera há alguns anos. O futuro dela seria com pessoas e lugares do passado dele. Será que ela poderia cair nos artifícios do deslumbramento que aquilo trazia junto? Tinha medo. Ainda tem. Ele fora atraído pelo ouro de tolo e tinha sobrevivido, mas também fora traído pela emboscada. Caíra na armadilha. Sem perceber, ela tinha juntado aqueles pedaços todos que estavam espalhados. Talvez tenha misturado tudo sem saber nem do que se tratava. Não tinha importância. Cheia de vontades, quase sempre preferia curtir a nudez antropofágica mútua a perder tempo com um filme qualquer. Ele só pensava nela. Nem lembrava mais que teve o coração dilacerado há poucos meses. Já não eram tão poucos assim, afinal ele estava esquecendo. Ele era música o tempo todo. Para ela tinha hora certa, mas respirava carnaval. Ele buscava forças físicas e psicológicas pra tudo aquilo de que fugira a vida inteira.

Ela nem se dava conta, mas era o número dele e talvez nem soubesse como tinha ficado linda com aquele tênis vermelho que ele nem usava mais. Talvez porque tivesse esquecido que ele existia. Ela conseguia trazer de volta as melhores coisas que ele tinha esquecido. Trouxe o melhor dele de volta. Era isso que as pessoas olhavam na rua? Ele se preocupava. Ela? Nem aí. Queria mais é que olhassem. Eram assim: diferentes e de “boaça”, mesmo quando não eram. Cheios de neologismos. Era vida nova pra ambos. Salto de paraquedas. Quebra de paradigmas. Talvez fosse aquele frio na barriga de uma entrevista de emprego qualquer e que de repente pode mudar tudo com uma contratação. Ela havia sido promovida. As fotos nas redes sociais comprovavam. Até então ele tinha sido discreto. Ela era barulhenta, tipo funcionária do mês. Com quadro na parede pra chamar a atenção, mas não sabia. Já era março do ano seguinte e eles nem tinham se dado conta. Eram distraídos demais e só queriam viver.

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#pracegover Violeta de lado, com cabelo curto e preto em um fundo claro.

Reprodução

 

De: Benjamin

Para: Violeta

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